LUZ DO CAMARIM
LUZ DO CAMARIM Osmar Rezende
O trabalho em uma casa de Cultura nunca é enfadonho. Mesmo sabendo antecipadamente da programação, os eventos vêm sempre carregados de novidades. É uma exposição itinerante da pintura modernista, cerâmicas da Polinésia, esculturas contemporâneas, e a galeria torna-se um atraente ponto de encontros.
Simultaneamente acontecem esse ou aquele festival de longas e curtas na sala de cinema, filmes de arte essa conotação ainda me parece meio dúbia, difícil de classificar -, apresentações da Orquestra e Coral, e os espetáculos no grande teatro. Estes, a coqueluche do público, sejam shows ou peças teatrais.
Como trabalho no setor de comunicação, vira e mexe faço o papel de hostess, ou guia, cicerone. A casa é imensa: salas de ensaio para o corpo de ballet, para a orquestra e o coral, oficinas de cenário e figurino, e o palco, por si só uma aventura à parte. Há anos na casa, conheço cada tijolo dali, e seus segredos.
Tem um rapaz que trabalha lá do outro lado do prédio, ele é o responsável pelos camarins. Fernando é seu nome. Tem 22 anos, 8 menos que eu, o rosto bonito, traços firmes, porém angelical, e é cego congênito.
Nada escapa à sua acuidade: a poeira na bancada de espelhos, os sofás, tapetes, banheiro, toalhas, papéis, tudo esmerado, não pode faltar nada. E o bom gosto? Ele sempre acerta nos arranjos florais, encomendando de acordo com o artista em questão: rosas vermelhas para aquela, cravos brancos para esse, buquê sortido para o outro, um primor. Intuitivamente ele se baseia na personalidade da estrela em cartaz no momento.
Fernando tem um corpinho muito bem delineado, não sobra nem falta nada. Pelo pouco que eu podia alcançar, até então, dava para ver que ele era lisinho que nem índio, levemente moreno, os cabelos negros, escorridos, correspondiam.
Seu sorriso iluminava o ambiente, mas ele era tímido concentrado no serviço deixava poucas frestas para uma aproximação extra curricular.
Assim mesmo, atrevido como sou, fui me achegando ao rapaz, abastecia-o com sinopses dos shows, biografias dos artistas, fofocas da mídia, essas coisas que abundam em meu setor. Elogiava seu trabalho, sem falsidade, por puro e justo merecimento.
Em pouco tempo já nos permitíamos certas brincadeiras, nunca na frente dos outros, pois esses jogos estavam ficando cada vez mais salientes.
Quando passava por ele, sussurrava algo como: que bundinha linda, héin ?, brincando. No que ele tentava esconder o riso me emendando: Sossega, toma juízo.
Outras vezes, cruzando pelos corredores, soltava apenas uma breve cafungada, e ele me identificava imediatamente, corrigindo: Ficou doido, é? Olha o pessoal.
Comecei a arrumar pretextos para ir até o setor dele. Como ficava atrás do palco, durante o dia era meio deserto. Ele tinha uns três funcionários, mas quando eu chegava logo dava funções para eles, fora dali. O moço estava definitivamente ocupando meus pensamentos. Acho que é assim que a gente começa a se apaixonar.
E fomos nos acostumando com essas inconseqüências. Uma vez, quando a gente foi dar uma vistoriada num camarim, esbarrei a mão na bunda dele, sem querer. Ele ficou estático, em silêncio. Pedi desculpas, mas alfinetei: que delícia!. Então a surpresa. Ele virou-se, procurou minha mão, apertou-a e sentenciou: Você tem idéia aonde tudo isto vai nos levar?. Pra cama, espero, respondi, já me excitando ao sentir o calor de sua mão.
O tempo parou. Ficamos um não sei quanto nos acariciando, os braços, o peito, pescoço, cabelos, deslizando as mãos pelos rostos, eu confirmando, ele descobrindo. Encostei meu
corpo contra o seu. Tudo parecia rodar, ele tremia. Segurei sua nuca, puxei e rocei meus lábios em sua boca. Ele fez o mesmo; já não podíamos esperar mais nada, e nos mordemos num beijo louco, quente, apaixonadamente selvagem.
Num lampejo de lucidez estiquei o braço e tranquei a porta do camarim.
A volúpia continuou, desenfreada. Tocávamos nossos corpos, sob a roupa, num quase desespero. Beijos se sucediam, olhos fechados, agora ambos cegos, pelo desejo.
Ouvi-o deixar escapulir um murmúrio, como que só pra si: Que loucura, isto nunca me aconteceu. Nem comigo, balbuciei, não assim.
Começamos a desabotoar as camisas, as fivelas, nossas roupas caindo ao chão, peça por peça.
Fernando dava olhos a seus dedos, ávidos de descobertas, buscando conhecer cada pedaço do meu corpo, e revelando o seu.
Nunca na vida pude supor que minha pele tivesse tantos mistérios. E jamais senti tamanha nudez. Ele estava se apossando da alma da minha carne.
Agarrados, unos, fomos deslizando para o tapete. Deitados, frente a frente, nossos membros rijos se espremiam, se degladiavam, túmidos.
Como dois animais famintos nos mordíamos, nos lambuzando no suor que escorria.
Fiquei todo o tempo com os olhos cerrados. Sabia ser impossível ter a mesma sensação, mas queria ao menos chegar perto do que ele sentia, como sentia. Ilusão, sim, porém era o mínimo que eu podia tentar.
O frenesi pedia mais, muito mais. Numa breve pausa para retomar o fôlego disse-lhe que queria penetrá-lo. Hoje sou seu, todo seu, concordou sem resistência. Mas, veja lá... tenho medo, acrescentou com prudência.
Eu estava diante de um tesouro, virgem, frágil. Minha fome sexual explodia como uma revolução, mas era preciso cautela, e muito carinho. Virei seu corpo e deitei-me sobre ele. Ouvi suas narinas arfando, pedintes, seu corpo quente agora parecia manso. Ele mexia debaixo de mim, fogoso, satisfeito, como que a realizar um sonho. Eu também sonhava, um amor diferente, antes etéreo, agora palpável. Mas era amor. Ele me completava.
Lubrifiquei-me com saliva e direcionei o pênis entre suas nádegas.
Ao principiar a penetração ele enrijeceu os músculos. Parei, mordisquei sua nuca, acariciei todo seu corpo que foi outra vez relaxando. Empurrei mais um pouco, devagar, para dentro do seu ânus. Ele soltou um gemido felino. Esperei um pouco , segurei seus ombros com firmeza e desta vez enterrei todo meu membro naquele espaço apertado, pulsante.
As paredes ecoaram um uivo lancinante.
Ele já não era mais virgem.
Agora os dois se contorciam, ofegantes, minhas ancas subindo e descendo, massacrando seus glúteos. Exalávamos tesão por todos os poros. Suas mãos imploravam pelas minhas. Segurei-as com força, apertando, empurrando meu falo pela última vez, derradeira contração.
Ultrapassamos juntos a linha de chegada.
Uma frouxidão sem fim tomou conta de nós.
Nem percebemos que já era noite lá fora. E só então me dei conta que a luz do camarim esteve apagada o tempo todo. Nem foi preciso, o desejo tem outro tipo de visão.
Muito depois, comentei o ocorrido com uns amigos, sem citar nome, local nem data, e ouvi deles a seguinte indignação: "Que absurdo, como você pôde fazer isso com o pobre do ceguinho?
Coitados, a escuridão deles é outra, nunca perceberão o quanto podemos nos enxergar pelas mãos de um cego. Sobretudo quando o amor está a guiar.
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